As pessoas prendem-se demasiado ao que ouvem e assumem tudo que lhes entra nos ouvidos como sendo ou verdade ou mentira quando, às vezes, não é uma coisa nem outra.
Há uns tempos, a meio de uma conversa, a pessoa com quem estava a falar sobre outras pessoas com quem tivera uma confusão - sendo que eu conhecia todas as partes - disse-me assim: olha, eu não sei se foi isto exactamente o que aconteceu, isto é como me lembro de ter acontecido. Uma afirmação de uma clareza que é pouco comum ouvir-se.
Ela não me estava a mentir mas sabia que podia estar a contar apenas o que se lembrava e não necessariamente o que acontecera, coisa que o cérebro faz sem se dar conta e que a boca reproduz involuntariamente.
Sempre que me contam coisas eu parto do princípio que não é precisa porque o que, normalmente, mantemos é mais o sentimento e o quadro geral que terá acontecido mas não os factos, fiéis, que levaram a ele.
Eu estou sempre atento mas é raro quem conta também estar.
E porque as pessoas dão demasiado valor ao que ouvem e muito menos ao que lhes é mostrado involuntariamente:
a) há uns anos estava a lanchar com uma amiga e vieram uns miúdos pedir-me dinheiro. Recusei dinheiro mas disse-lhes que, se quisessem, fossem lá dentro pedir o que queriam que eu pagava; eles foram, o empregado veio confirmar se eu pagaria; eu confirmei; eles comeram.
Quando ela contou isto a umas pessoas que me conheciam, disseram-lhe (por palavras mais meigas porque a coragem é pouca) que tinha feito isso porque a queria comer.
É verdade, queria mesmo.
Não é verdade que tenha sido por isso.
b) quinta-feira à noite, saí para comprar cigarros e quem estava comigo também foi.
Dia do Trabalhador, quase tudo fechado.
Cheguei à bomba de gasolina e estava um desgraçado - como costuma acontecer nas bombas de gasolina depois da meia-noite - com um pacote de bolachas à frente. Quando chegou à minha vez, percebi que me ia ser pedida alguma coisa e engatei o NÃO porque me recuso a dar dinheiro com base nas mentiras que costumam contar.
Não. Queria leite. Perguntei-lhe que mais? e ele disse que não se importava de tomar um café porque também estava frio.
Comprei as duas coisas e dei-lhe. Não esperei que me agradecesse porque me custa ver gente com fome e que quer comer. Dei-lhe e daria mais se mais me tivesse pedido e tivesse dinheiro no bolso.
Quem estava comigo nem estremeceu. Conhece-me mais do que aquilo que lhe digo ou o que dizem de mim. Olhou para mim, riu-se, e fomos à nossa vida.
Não somo tudo que dizemos nem só o que dizemos.
Às vezes não dizemos porque não conseguimos; outras vezes não dizemos porque não queremos; outras vezes não dizemos porque não sabemos.
Somos muito, ainda que não tudo, o que fazemos.
Às vezes fazemos o que não queremos; às vezes fazemos o que não devemos; às vezes fazemos o que não dizemos.
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