Saturday, February 28, 2015

...estava cansado, por isso, descansarei

Como eu tenho dificuldade em entender as paixões de algumas pessoas por algumas coisas (que vão desde o que gostam de ouvir como ao que gostam de ver), é difícil explicar o quanto eu gosto de Samba e o porquê de tanto gostar.
Já por aqui disse que o meu único verdadeiro caso de Amor é com o Rio de Janeiro e acho que o meu caso de Amor só existe porque o Samba existe e porque o Samba é Samba.

Parece-me, isto sem muito me debruçar sobre o assunto, que a dificuldade de ser entendido o quanto o Samba é tudo que se quer começa no ponto em que ele se encontra.
Por um lado, os snobeiros não entenderão o quão rico é o Samba e o quanto, a maioria das vezes, é bem tocado porque o Samba nasceu no morro e no morro só se vende droga e é-se pobre.
Por outro lado, quem nasceu com os pés enfiados no Samba nasceu no morro e porque se pensa o que se pensa do morro, quer-se distanciar e reagir contra o que de si é esperado.

Outro problema que se dá com a rama daquilo que se entende por Samba é o que se vende sobre ele.
Fora do Brasil, o Samba é Carnaval e cor e gajas meio nuas e alegria. O Samba não é isso. Fazer Samba não é contar piada e quem faz samba assim não é de nada. O bom Samba é uma forma de oração.
Se alguém perder tempo suficiente, entenderá que o Samba, o bom, é a vida contada de uma forma que pode ser entendida e nem sequer falo de ter uma especial atenção a uma música específica, falo do próprio género.

Percam tempo a ouvir Cartola ou João Nogueira ou Nelson do Cavaquinho e entenderão.
A tamborim, o cavaquinho, o pandeiro, o tambor e a cuíca fazem-nos balançar o corpo ao mesmo tempo que as palavras nos fazem balançar a alma. Percam tempo a ouvir o Tive Sim mais do que a ouvi-lo para se compreender que as palavras têm a tristeza das cicatrizes mas a música tem a leveza da mais garrida das plumas.

Dor e Alegria.

O Ismael Silva escreveu, enquanto tudo à volta se arrepia num frenesim de foguetes, que se vc jurar que me tem amor, posso me regenerar. Mas se for para fingir mulher, a orgia assim não vou deixar.
Redenção e salvação.

O Adorinan Barbosa disse que de tanto levar frechada do teu olhar, meu peito até parece sabe o quê? Taubua de tiro ao alvaro, não tem mais onde furá.
Beleza sem sofisticação. Não precisa de ser erudito para ser bonito.

O Jorge Aragão acha que por favor, não me olhe assim, se não por pra viver só para mim...é tão bom se querer, sem saber, como vai terminar.
Medo da entrega e o frio na espinha que devia esfriar mas só aquece.

Não quero com isto dizer que só no Samba se escreva bem, seria parvo e mentiroso, mas não encontro outro em que tudo se conjugue e seja perceptível aos outros.
A Bossa Nova, por exemplo, que é muito mais bem aceite entre os intelectuais que o Samba não é mais do que o próprio Samba com, permitam-me, menos variedade musical...e eu adoro Bossa Nova. Aliás, os mestres da Bossa não admiravam ninguém mais do que admiravam os mestres do Samba.

E depois há a envolvência quando se lá está.
Não se bebe vivo nem o agora super in Gin. Bebe-se cerveja.
Não se pensa no pé que se usará a seguir. É-se banhado pela chuva tropical.

Quando comecei a aprender estas coisas, que aconteceu por acaso mas já menos por acaso pela mão de uma preta brasileira de quem guardo óptimas recordações, dei-me conta de que porque o antes era mais verdadeiro do que o agora as melhores sambistas não eram novas. A languidez que se precisa no Samba de raiz adequa-se pouco ao Samba da Sapucaí, por isso, se se quer ver sensualidade vai-se ao Bom Sujeito e se se quer ver sexualidade vai-se a um ensaio da Beija-Flor e se as mais das vezes quero sexo, estranhamente ou nem tanto, ser hipnotisado como uma cobra capelo pela flauta que se move à sua frente acontece-me com a sensualidade.

Obrigava a minha nega a sambar para mim e ficava muito feliz. O Samba faz-me feliz e porque não sou naturalmente feliz fico-lhe muito grato.

E agora, para finalizar e para demonstrar o motivo pelo qual não há prazer sem dor nem alegria sem tristeza... e nem beleza sem a soma de todos os elementos...e porque pra fazer um samba com beleza é preciso um bocado de tristeza (Vinicius de Moraes, só para se perceber que quem, de facto, é evoluído lhe interessa pouco de onde vem a arte), um bocado de O Mundo é um Moínho do Cartola. Música escrita em resultado da enteada ter virado puta:

Preste atenção, querida.
Embora eu saiba que estás resolvida
Em cada esquina cai um pouco a tua vida,
Em pouco tempo não serás mais o que és.

Ouça-me bem, amor.
Preste atenção, o mundo é um moínho
Vai triturar teus sonhos, tão mesquinho
Vai reduzir as ilusões a pó.

Preste atenção, querida.
De cada amor tu herdarás só o cinismo
Quando notares estás à beira do abismo.
Abismo que cavaste com teus pés.

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