Cinismo
É difícil, por vezes, distinguir onde acaba a obrigação e se inicia a vontade.
Anos de observação de gente e de esforço por ver o que está lá e não o que querem que veja tornou-me naquilo que uns chamarão de cínico mas que eu chamo de realista.
Não acho que seja um gajo cínico.
A minha cabeça não é cínica.
Quando estava a ver o Babel, por exemplo, a minha cabeça não foi para caralho, um gajo vai de férias e leva um tiro mas antes para mesmo no meio daquela miséria e com um tiro, há gente que te vai querer ajudar só porque sim.
As minhas experiências de viagens não é me fez mudar a opinião. Reforçou-a.
Quando estive, agora, na Geórgia ficou-me na memória uma mulher que a avisou que tinha os cordões desapertados só para evitar que Ela tropeçasse. Esta pessoa não quis vender nada. Esta pessoa nem sequer conseguia comunicar verbalmente porque não falava inglês e nós não falamos russo e nem georgiano.
Tenho várias imagens destas.
Há anos, no Rio de Janeiro um varredor fez-me sinal com a cabeça para não seguir naquela direcção;
Tempos antes, ainda, um gajo parou o carro no meio de uma estrada deserta, no México, para nos dar boleia para a nossa aldeia porque tínhamos perdido o transporte;
Nas Filipinas, uma miúda foi levar-nos à mercearia porque nós precisávamos de comida e depois esperou para nos trazer de volta.
Ainda acho que as pessoas são inerentemente boas.
...mas acho, também, que no contexto em que nos inserimos, cosmopolita e profissional, essa bondade esconde-se nas sombras quer porque se institui que assim deveria ser quer porque é castigada quando exibida.
E, por vezes. a falta de vontade de sermos honestos impede que a bondade se manifeste ou, pelo menos, que seja reconnhecida.
Há, por exemplo, uma ideia que se vende de família.
E, pior, que a família merece tudo.
E, pior ainda, que alguém que não aprecie particularmente a família que lhe saiu na rifa ou que não está disponível para tudo que se lhe exige é uma má pessoa.
Não dou para isto porque não me interessa o que acham de mim,
Estive a ver o Ozark este fim de semana (very cool e útil em quarentena) e, a dado momento, a irmã entrega o irmão à morte. Diz onde ele está a quem sabia que o ia passar.
A situação é extrema e horrível.
Provavelmente, se fosse um familiar meu nunca lhe perdoaria porque existiria uma ligação emocional intransponível (eu gosto muito do meu irmão).
...mas, naquele caso, se ela não entregasse ia morrer...ela, o marido e os dois filhos.
Faz dela uma má pessoa?
É possível.
Nós faríamos outra coisa?
Difícil dizer, se formos honestos, não é?
0 Comments:
Post a Comment
<< Home