Thursday, August 27, 2020

Estamos todos presos por Arames

 Se calhar não somos todos. Se calhar, nem é a maioria. Mas de certeza que somos muitos.

É uma conta difícil de se fazer, até porque só se torna visível esta fragilidade depois de revelada pela arame que se quebra.

Quando um idiota entrou por uma igreja de pretos dentro e começou a aviá-los, procuraram-se muitas explicações - procuram-se sempre. Um amigo dele terá dito que o gajo nunca tinha sido racista e não entendia o que tinha acontecido...mas lá revelou que a namorada o tinha trocado, há uns dias, por um preto.

Isto é parvo? É um bocado.

O gajo já era capaz de ser mal aparafusado? Provavelmente.

...mas nada disso torna falso que este mentecapto tenha matado todos aqueles pretos por causa do que referi. Partiu-se-lhe o arame.


Isto é muito desagradável, claro.

É algo como a versão biológica ou psicológica da teoria do caos e do efeito borboleta. Não estamos preparados para o acaso e para a aleatoriedade. Não concebemos o que não tem uma explicação que podemos entender como lógica.

Mas a realidade cagou um bocado na nossa preparação. Podemos inventar as ligações que quisermos que nada muda o que aconteceu e o que irá acontecer; não o que irá acontecer em termos deterministas ou de fado mas o que irá acontecer e que não temos como controlar porque é desordenado.


Reparem, por exemplo, nos filmes e, em grande medida, também nos livros.

É verdade que alguns têm sucesso com base em nuances e na realidade (talvez o Magnólia seja um exemplo e, em alguma medida, também o Paris, Texas) mas a esmagadora maioria não. E não porque é desconfortável achar que 1 minuto pode valer alguma coisa mas é muito mais confortável o acontecimento terrível que tudo muda...porque a probabilidade de ficarmos face a um acontecimento deste tipo é baixa.

Há uns anos, um escritor de novelas brasileiras disse que uma das suas novelas tinha sido um fracasso porque as personagens não eram suficiente marcadas. O que ele queria dizer é que as personagens deste falhanço não eram perfeitas no que haveriam de desempenhar, pelo que não existia, preto no branco, bons e maus.

Ele tinha razão. É preciso que nos digam por quem torcer e quem desprezar porque, voltando ao que entrou a disparar na igreja, o gajo era maluco! o que significa que eu (ou tu ou ele) nunca farão uma tal alarvidade porque não somos malucos.


...mas não.

Todos somos muito frágeis e todos somos capazes de actos reprováveis - se formos sortudos - ou condenáveis - se tivermos menos sorte - mas esses actos, que pelas suas consequências devem ser castigados porque a sociedade e a ordem assim o exigem, não deveriam ser aptos a apagar tudo o resto que também somos e que não é reprovável e nem condenável.

Eu sei, eu sei. Este discurso parece uma merda new age e super progressista. Sou nenhuma dessas coisas, felizmente.

O que sou é um gajo que entenda as suas limitações e que reconhece que o monstro que vive nos outros também vive em mim.

Somos todos capazes de actos inomináveis porque somos humanos.

...mas a condenação e o castigo não podem ser revogados porque os outros não têm culpa das nossas limitações e dos nossos demónios, pelo que não têm de pagar por eles.

Bem, eu só aprendo realmente as coisas que compreendo. As outras, como uma grande parte do meu curso comprovam, ficam para ser regurgitadas, na melhos das hipóteses.

E preciso de compreender os erros para não os voltar a cometer e porque sou pouco ambicioso a minha única exigência é não fazer a mesma cagada duas vezes. 


Ps. não ia ser nada disto o que vim cá escrever mas foi.

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